Publicado em 01/10/17
Os antigos banquetes e os relatos de um cozinha excêntrica e rica no uso de especiarias
Sabe aquela festa de casamento em que você nota o exagero do banquete e prevê o desperdício que aquilo tudo vai gerar? Bem, comparado ao que já houve no passado, os fartos jantares de hoje parecem até econômicos. Nos tempos pós-Marco Polo na Europa, o apreço pelas especiarias era altíssimo, e as cortes francesas e italianas abusavam de tais eventos gastronômicos.
Entre os livros que ficaram populares na época, temos o Le Viandier, célebre coletânea culinária da Idade Média escrita pelo cozinheiro da corte de Carlos V; Fait Du cuisine, de autoria de Maitri Chiquart, o cozinheiro do Duque de Sabóia[1]; e De honesta voluptae et valetudine[2], obra italiana provavelmente escrita em 1465 por Bartolomeo Sacchi.
Chiquart, por exemplo, descreve os detalhes de um banquete de dois dias realizado em 1420. Roy Strong especifica as quantidades de ingredientes utilizados: 100 bois gordos, 130 carneiros, 120 porcos, 200 leitões, 60 porcos gordos, 200 cabritos e 2 mil galinhas. Seis mil ovos somam-se aos milhares de animais mortos. Para condimentar a abundante refeição, foram usados nada mais do que 12 quilos de açafrão e 3 quilos de noz moscada, além de cravo, macis, gengibre, grãos do paraíso, canela e pimenta. O banquete foi servido em quatro mil pratos de ouro, prata, estanho e madeira[3]. Exagero é a palavra mais modesta que posso usar para me referir a tais acontecimentos.
Strong descreve ainda um jantar organizado por um nobre, em 1368, em comemoração ao casamento de sua filha. Na festividade, foram servidos dois leitões dourados que cuspiam fogo. Já no Império Romano, as mais diversas excentricidades ocorriam em jantares que chegaram a reunir mais de 600 pessoas e mais de mil mesas; outros eram acompanhados de torturas e decapitações, ou até mesmo lutas de gladiadores.
A criatividade posta à mesa não para por aí. Os relatos mencionam singelos pássaros que, aprisionados em guardanapos dobrados, surpreendiam os convivas ao fugirem do laço. Animais gigantes eram esculpidos em açúcar, outra “especiaria” caríssima na época. Havia também espetáculos teatrais com cantores, dançarinos, cortesãos tocando alaúde, músicos tocando trombetas montados em elefantes, leões, cavalos e camelos. Sem falar nas mais estranhas iguarias, como carne de pavão, garça, enguias, esturjão[4], capões[5], pintinhos, esquilos, javali, pombos, marrecos, faisão, perdiz, pato selvagem, ganso, miolos diversos, timo, orelhas, olhos e testículos de cabrito, cabeças de bezerro desossadas e recheadas, patas, nariz, focinho, bexiga, crista, rins, tripa etc.
[1] O Duque de Sabóia era Amadeus VIII (1383-1451).
[2] Roy Strong em O Banquete, página 122.
[3] Roy Strong em Banquete, página 80.
[4] Espécie de peixe ósseo de aparência assustadora.
[5] Espécie de galo castrado que se alimenta em demasia para compensar sua disfunção sexual; sua carne seria, assim, mais saborosa.
por André Mafra