Publicado em 01/05/24
27 de maio – A chegada de Vasco da Gama em Calicute na Índia
Calicute – Um encontro inusitado entre Vasco da Gama e o Samorim
Após 80 anos de intensas batalhas e muita luta, os portugueses finalmente encontram o caminho marítimo para as Índias. Em 18 de maio de 1498, Vasco da Gama e seus homens avistaram o monte Eli na costa do Malabar na Índia, dois dias depois fundeiam no porto de Calecute. Estava cumprida a viagem que é considerada o marco do início da dominação européia na Ásia.
Após vencer dois oceanos e andar mais de vinte mil quilômetros, a viagem de Lisboa a Calecute durou seis meses, Vasco da Gama volta a Portugal com seu navio com amostras de pedras preciosas, tecidos e especiarias provando que atingiram o Oriente. Um verdadeiro marco na navegação mundial. Fato que é motivo de orgulho ainda hoje para o povo português
Vasco da Gama rompeu uma grande barreia comercial que mudou a história do comércio mundial para sempre, seu feito foi o grande trunfo e marca do poderio português na época. Esse grande passo para o comércio mundial também causou cenas que no mínimo eram de se imaginar constrangedoras.
Nossos colegas lusos, espanhóis, franceses, italianos, entre outros, eram bravos e destemidos guerreiros que saíram de uma Europa com fortes resquícios medievais, com quase nenhuma infra-estrutura na área de saúde, esgotos e etc. Soma-se a tudo isso as condições precárias pelas quais nossos marinheiros navegavam em direção ao novo mundo naquela época. Elaine Sanceau[1], umas das minhas escritoras favoritas sobre os grandes nomes da navegação portuguesa, descreve brilhantemente os homens que habitavam aquelas naus, diz ela: eram todos heróis no campo de batalha e crianças estragadas fora dele.
Voltando a Gama e seus homens, em 28 de maio[2] de 1498, Gama ordena que seus navios sejam preparados tanto com armas como homens a bordo em suas melhores roupas. Vasco da Gama e mais 13 homens são designados para irem a terra. Já em terra visitaram um templo hindu onde encontraram muitas representações de divindades indianas das quais algumas possuíam muitos braços[3] trazendo estranheza aos portugueses.
Gama e seus homens finalmente são levados para o palácio do Rája de Calicute seguido por uma multidão de curiosos. Temos então um choque diplomático no mínimo inusitado[4]. A região que Vasco da Gama chegou era parte do império hindu de Vijayanagar[5] que estava em seu auge. Calicute era o porto do império no oceano índico enquanto a capital Vijayanagar era o centro de um grande sistema político localizado mais ao centro no sul da atual Índia. Esse império era riquíssimo e sua capital tinha uma atividade econômica bastante opulenta. Dizia-se que via-se mais tecidos de seda do que algodão e que lá havia as mulheres mais belas do mundo.
O comércio prosperava e jóias eram vendidas a céu aberto, tal era a segurança oferecida pelos governantes locais aos mercadores da região, atitude altamente popular se você deseja que a classe comerciante lhe apoie, ainda mais se ela for de maioria religiosa diferente, no caso muçulmana. O Samorim[6] de Calicute era o responsável por lidar com as questões comerciais da região do Malabar e proporcionar a estabilidade e segurança aos mercadores em sua maioria mercadores árabes. Uma aliança delicada e frágil entre hindus e muçulmanos estava consolidada na região, mas uma nova peça inesperada chegou para encaixar. Agora havia os cristãos portugueses carregando a fama ruim dos problemas que tiveram na costa africana. Tínhamos três grandes religiões misturadas em um ambiente de muitas trocas comercias e dinheiro, resumindo em uma palavra: encrenca.
No momento das apresentações diplomáticas, os presentes ofertados pelos europeus consistiam de objetos simples, tratava-se de chapéus, quatro colares, seis bacias de cobre, algumas poucas peças de seda, dois barris de azeite e dois de açúcar e mel, em resumo uma afronta. Esperava-se muito mais de um visitante com aspiração comercial. Constrangido, Gama justificou-se que o propósito era estabelecer um primeiro vínculo com a rica coroa portuguesa que ele representava. Seus presentes antes que chegassem as mãos do nobre indiano foram previamente bloqueados pelo feitor que os examinou. Em uma situação tensa e constrangedora o feitor riu justificando que esse tipo de oferenda nem um pobre mercador ousaria fazer. Fernanda de Camargo[7] reforça que a aproximação com o Samorim de Calicut foi de fato muito inábil, e as rações do fidalgo português (…), … primaram pela grande agressividade. O presente adequando seria o ouro,[8] nobre metal que por muitos anos viajou da glória do império romano para a Índia. Essa era a polaridade, dos visitantes, incluso Europa, recebia-se o ouro, uma paixão local.
Vasco da Gama não se banhava a mais de um ano, não só por conta da expedição, mas por que afinal, um banho de corpo inteiro era comum na Europa apenas duas vezes por ano, seus odores não eram dos melhores e sua alimentação e de seus homens durante aquele período também não. Foram então conhecer o salão real, os sacerdotes do Rája borrifavam perfume nos visitantes a fim de aliviar os Cheiros de Corpos e pediram para que os mesmos tapassem a boca com a mão esquerda ao dirigirem a palavra ao Samorim, Glafer pediu também aos visitantes para não tocarem com os lábios na prata dos copos que iriam beber água e não sabendo beber dessa forma engasgavam, erravam a boca e se molhavam fazendo a diversão do Samorim, além disso, solicitou que os ilustres viajantes que evitam-se o escarro e o arroto.
O samorim em sua sala estava sentado envolto em uma túnica bordada com rosas de ouro, almofadas de seda enfeitadas também com o cobiçado metal, rubis enfeitam suas roupas. Seus cabelos sedosos, levava nos dedos pesados anéis de ouro e suas unhas dos pés e das mãos esmaltadas, braceletes de ouro e pedrarias ornavam seus braços descobertos[9] e seu hálito perfumado por uma mistura de cânfora e âmbar e faziam daquele encontro o encontro dos extremos.
Antes de se vestir era tradição local dos nobres, passar no corpo uma pasta perfumada, além de talco, almíscar e outras essências. A barba e o bigode eram aparados e os homens se depilavam. Além disso, o ambiente era perfumado com incenso e os nobres mastigavam uma mistura de especiarias e bétele, essa última uma especiaria da família das piperáceas, a mesma da pimenta preta que tem como objetivo melhorar o hálito e confortar o estômago[10]. O resultado dessa mastigação era descartado em uma escarradeira de ouro. Gama queria agradar e resolveu agir com os locais. Diante do Rája, saudou o indiano erguendo suas mãos juntas frente ao peito, reproduzindo algo parecido com um prônam mudrá[11], gesto típico de saudação dos hindus até hoje bem conhecido e estereotipado no ocidente quando se quer passar um “ar indiano”. Nada de mais efetivo aconteceu, a noite chegou e o primeiro encontro entre o navegador e o Rája foi finalizado com promessa de um novo encontro.
Gama foi mais uma vez advertido dos cuidados que teria no trato com o Samorim, mas uma vez, os locais sugeriram que fossem cautelosos em ouvir e responder, e terem as orelhas mais prontas no seu proveito que na eloquência da embaixada. Para ter calma, pois era de praxe que os visitantes não solicitassem visitas ao Rei local, que eles se apresentassem somente quando o Samorim solicitasse e que era costume local dos príncipes não darem ouvidos a alguém sem lhe primeiro levar alguma cousa[12]. Curiosamente já se sabia que para se comercializar com aqueles ricos mercadores e governantes precisariam de muito ouro e prata.
Esse conhecimento básico, os europeus já detinham desde a época dos romanos 1500 anos antes como descrevemos anteriormente! Tais oferendas já tinham sido bem aceitas e serviram para aproximação e escambo nos portos das tribos africanos anteriores, mas soaram como ofensas a um rei coberto de pedras preciosas e seda. Será que o Rei português achou que Vasco talvez ainda não obtivesse êxito e conseguisse apenas se aproximar um pouco mais da Índia. Lembremo-nos que as naus tinham a chance de afundar, valeria a pena encher as naus de outro e prata e lançarem-na junto ao desconhecido? O melhor era uma viagem de exploração e não ainda de comércio.
Os conselheiros do Rája indiano permitiram uma nova audiência com os europeus. Gama teve que esperar por quatro horas a frente de uma porta. A essa altura os comerciantes mulçumanos já conspiravam contra os cristãos junto ao soberano hindu. Vasco da Gama informou ao hindu que seu reino possuía tanto ouro, prata, sedas e muitas outras preciosas mercadorias e pedrarias quando o reino dele possuía de pimenta preta e outras especiarias e que ele havia se deslocado até lá por saber as importância e fama que o Rája hindu tinha na região. Mas contra esse namoro luso-indiano havia um inimigo declarado: os mercadores locais mulçumanos.
Diziam que o capitão português era um “pirata cruel e de instinto sangrento” e que seus homens tinham fama de vagabundos[13]. Os mouros alegavam ao rei hindu que os portugueses estavam mentindo, que suas cartas oficiais eram falsas, que não estavam em nome de um Rei distante e poderoso e que isso era provado pela pobreza dos presentes que ofertaram.
Nessa nova audiência Gama só poderia ser acompanhado de mais dois homens. O clima do segundo encontro não era dos melhores e o samorim questionou a pobreza dos presentes ofertados em resposta Gama justifica-se respondendo que veio em uma missão de contato como um embaixador, por tanto trazia cartas, e não como um comerciante e que em uma próxima missão ele cuidaria para que os presentes chegassem até o soberano. Estava provocada a situação que desencadearia a descoberta do Brasil por Cabral dois anos depois criada a necessidade de se impressionar o empertigado hindu.
Os portugueses descobrem que Calicute é maior e mais poderosa que Lisboa, peças de arte, enfeites egípcios e venezianos são moedas de troca em uma cidade que comercializa com o mundo. Calicute não era o fim do mundo, era o lugar onde tudo acontecia. As preciosas especiarias estavam todas lá: o almíscar e o ruibarbo, gengibre, cravo da Índia, canela e noz-moscada, etc. Essas informações obtidas pelos portugueses com a expedição de Gama foi evidenciada pela carta que o rei português enviou aos Reis Católicos espanhóis e dizia: “(…) acharam grandes cidades de grandes edifícios, ricos e de grande povoação, nas quais se faz todo o trato de especiaria e pedraria (…) e trouxeram canela, cravo, gengibre, e outros modos de especiaria[14]”. Justamente com essas notícias que Isabel a Católica se enfurece com Colombo, percebendo de vez que o genovês não tinha chegado a Índia mesmo. A Índia de Colombo infelizmente não era a Índia de Vasco da Gama.
As negociações foram fracas, a partir desse momento as relações entre o Rája hindu, os comerciantes muçulmanos e os cristãos foram se deteriorando cada vez mais. Antes de ir embora, Gama e seus homens estreitaram as relações com a maioria hindu local que parecia mais amistosa do que os comerciantes muçulmanos preocupados não tanto com a concorrência[15], mas com a segurança e na estabilidade do comércio que lá ocorria, fatos que efetivamente ocorreram posteriormente.
Receosos dos portugueses, os árabes venderam suas especiarias com qualidade duvidosa, seu pagamento é feito pelos portugueses com rubis! Vasco da Gama não obtém a quantidade de especiarias que desejava, por pouco sua tripulação não foi toda dizimada pelos mercadores árabes nada contentes com o infiel “acampado com seus navios em seu quintal”. Pressionaram ferozmente o Rája indiano, inclusive ofertando propinas enormes ao samorim para que ele destruísse os navios portugueses. Em uma situação tensa os mouros insistiam para que os navios portugueses atracassem em terra e não ficassem sempre em prontidão para zarpar,a ideia era incendiar as naus portuguesas e prendê-los em terra. Vasco da Gama soube também de naus vindo de Meca formavam um força moura para dizimá-los e que as manobras burocráticas eram uma maneira de tardar a saída dos cristãos daquelas terras.
Após muita tensão por conta da negociação para que os portugueses pagassem taxas portuárias e troca de reféns. Vasco da Gama parte para sua viagem de retorno a pátria amada com apenas dois navios e 55 homens, fugindo de uma eventual grande armada árabe a caminho de Calicute. Mas o que realmente importava era voltar e mostrar ao ocidente que os lusos estiveram na terra das Especiarias e Colombo não.
[1] Em seu Afonso de Albuquerque, página 83.
[2] 28 de maio também foi data da queda de Constantinopla pelos turcos otomanos e anos mais tarde mais precisamente no ano 1978 a data do nascimento do ilustríssimo que escreve essas palavras.
[3] Esse artifício ainda é muito utilizado pelos artistas hindus. Esses muitos braços representam movimento. A imagem mais clássica hindu com esse efeito é da de Shiva Natarája.
[4] “Ao riquíssimo Samorin de Calicute, o navegador branco de vistosas roupas pareceu pobre.” Rosa Nepomuceno em O Brasil na rota das especiarias.
[5] Os portugueses estabeleceram uma relação de parceria com o reino Vijayanagar, seus reis eram chamados pelos portugueses de reis vizinhos. Muitos fortes e feitorias foram estabelecidos posteriormente com a aprovação do império hindu. Russel em O Mundo em Movimento página 124.
[6] Garcia da Orta em seu Colóquio, página 205 explica o termo Samorim como sendo o rei ou Imperador de Calecute. “Elrey de Calecut (que tem por ditado Çamorim ou Emperador)…”. Já Barros explica que Samorim vem do malaio Samútri, rei do Mar.
[7] Em seu Arqueologias Culinárias da Índia, página 42.
[8] O navegador árabe que Vasco da Gama pediu que Gama não voltasse mais a terra firme prevenidno-o do pior. Seus amigos hindus também o alertaram dizendo que teria sua cabeça cortada, que era o modo como o Samorim lidava com os que vinham a seu país sem lhe dar ouro. Ronald J. Watkins citando Sea Road to the Indies, página 186.
[9] João de Barros, 103
[10] João de Barros, 106
[11] Mudrá é a linguagem gestual. Provém da raiz mud, alegrar-se gostar. Segundo DeRose em seu livro Tratado página 165, 45° edição. Já prônam traduz-se com saudar, invocar segundo o Léxico de Yôga antigo de Lucila Silva.
[12] João de Barros, 108
[13] João de Barros, 114
[14] Trecho da carta entre D. Manoel e os Reis Católicos transcrita por Eduardo Bueno em seu A Viagem do Descobrimento.
[15] Michael Krondl em seu O sabor da Conquista, página 172 cita que já há estudos nos quais calcularam que os portugueses não ficavam nem com um quarto do comércio total das especiarias na região. Ele cita também que nos séculos seguintes a China importava três vezes mais pimenta do que os europeus.
por Prof. André Mafra