Publicado em 22/02/23
Conheça um dos mais clássicos pratos da culinária de Mumbai – Coluna Vida Simples
Após uma jornada pelo país das especiarias, reservo as próximas colunas para contar um pouco dos sabores que encontrei no destino mais desejado na história pelos viajantes e mercadores: a Índia.
Hoje, reservo este texto a um dos mais clássicos lugares da culinária de Mumbai, o Sardar, que surgiu no antigo bairro operário de Tardeo. Atual centro financeiro e comercial do país, a pujante Mumbai, que no passado se chamava Bombaim (do português “boa baía”), carrega o título de segunda cidade mais populosa da Índia, perdendo apenas para Delhi, a atual capital. Abriga os muitos estúdios de cinema do que se conhece hoje como Bollywood, além dos grandes conglomerados de multinacionais dos mais diversos ramos. Em 1995, seguindo um movimento nacional de retomada da tradição anterior ao período colonial, o nome da cidade mudou para Mumbai, em homenagem à divindade feminina Mumbadeví, dos antigos povos pescadores.
Por sempre estar no meu radar, afinal sou professor do DeRose Method – cuja raízes bebem diretamente das antigas tradições indianas –, aproveitei o ano de 2022 para dedicar-me ao preparo dessa desafiadora jornada. Quando vou viajar, gosto de pesquisar por muitos meses o destino escolhido e com a Índia não foi diferente: livros, vídeos, filmes e séries povoaram minha mesa de trabalho. Soma-se a isso o fato de que meu direcionamento de estudos se deu para o tema da alimentação e a busca por sabores, logo, a terra desejada pelos grandes navegadores precisava ser desbravada mais uma vez. Certo dia, zapeando nos streamings, encontrei uma série que, mesmo com as habituais horríveis sinopses, resolvi assistir. Um dos capítulos tratava de Mumbai e de sua intensa e diversa vida cultural. Foi nessa série que vi, pela primeira vez, o Sardar, um restaurante simples que se tornou referência no preparo de algo que viraria febre na Índia: o páv bhají.
Mumbai é daquelas cidades intensas, cosmopolitas, com migrantes de várias partes da Índia em busca de oportunidades; um caldo cultural que formou uma economia poderosa, um dos motores deste gigante asiático, cuja relevância mundial todos nós testemunharemos ao longo dos próximos anos. Com uma população de mais de 20 milhões de habitantes, sua vida agitada me lembrou São Paulo, ao mesmo tempo em que, por ser uma cidade costeira, me remeteu ao Rio de Janeiro. Mas também se assemelha às cidades da baía do Rio das Pérolas, como Guangzhou e Hong Kong, na China. Tanto no caso indiano com Mumbai, como no chinês em Guangzhou, essas localidades serviam de ponte para os portos que comercializavam intensamente, ajudando a formar esse caráter “do mundo”, mas que em muito difere das capitais de seus países (Delhi e Beijing).
Mas qual é a história do páv bhají?
Trata-se de um prato rápido de preparar, com ingredientes simples e que encheu a barriga faminta de trabalhadores do setor têxtil em Mumbai, a partir da segunda metade do século XIX, quando a demanda por tecidos de algodão aumentou no período da guerra civil americana. Um molho de vegetais diversos amassados grosseiramente, muito bem temperado e acompanhado de pão fresquinho e macio, era vendido às portas das fábricas aos trabalhadores, que viam no páv bhají uma forma barata e prática de se alimentarem.
O popular prato se espalhou pelo país, mas é ainda no Sardar de Mumbai que encontramos um páv bhají que agrega, em suas disputadas cadeiras, toda a classe de visitantes que, como eu, enfrentam uma respeitável fila em busca da versão mais autêntica da iguaria.
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Em busca do páv bhají perfeito
Já em meu primeiro dia em Mumbai, após uma longa jornada de aeroportos, check-ins e tudo mais, a meta era terminar a noite degustando o famoso prato operário. Para fugir do trânsito, saímos de nosso hotel por volta das 21h30, na esperança de pegar um congestionamento menos voraz que o de costume na cidade e, após 30 breves minutos, chegamos ao Sardar.
Fui bisbilhotar junto aos cozinheiros, que estão “instagramavelmente” posicionados à frente do restaurante; um espetáculo que merecia ser visto. Montanhas de ingredientes: primeiro, manteiga, cebola e especiarias largadas em uma imensa e redonda chapa, seguidas de robustas porções de tomate que formam um molho espessado por muitas batatas já cozidas e amassadas, mais os vegetais que são grosseiramente macetados pelo chef, com instrumentos que mais parecem armas de combate. Ah! E, claro, mais alguns repetidos punhados de condimentos em pó, que apuram a mistura, formando uma massa densa, finalizada com muito coentro picado e vigorosos toletes de manteiga, que ousam derreter antes de serem retiradas as porções para os pratos dos clientes que por lá vão comer ou para as embalagens de delivery.
O charme do páv bhají vem do pão macio que o acompanha, e o toque da frigideira com manteiga – uma obsessão do proprietário – nos oferta a crocância e as inevitáveis calorias.
Após uns 20 minutos de espera, ganhamos nossa mesa. Eu, minha parceira e um amigo, pedimos duas versões tradicionais e uma acrescida de queijo por cima, todas acompanhadas com o macio e confortável pãozinho, cujo refil me surpreendeu: ao finalizar seu último naco, prontamente um novo prato cheio de pão aparecia em segundos. Para meu espanto, havia a opção “extra butter”, completamente desnecessária. Tempero e textura impecáveis, sabor inigualável, somados ao prazer das dentadas no pãozinho macio que remete à casa da vó. Uma experiência a ser vivida que, só de lembrar, fez minha boca salivar.
Voltamos para o hotel quietos, embasbacados e aguardando que o sistema digestivo desse conta de tudo aquilo para retomar a consciência.
Antes de terminar, uma iguaria para ajudar a digestão, o pam, no qual uma folha de noz betel é acrescida de coco ralado e especiarias que ajudam no trato digestivo. Horas depois de comer aquele “ninho” de folha e condimentos, fui descobrir que o betel é bastante estimulante e o mascar de sua folha não é indicado pela noite, por motivos óbvios. Mas o pam é tema para outra coluna.
Em resumo: se for à Índia, peça páv bhají. Se for a Mumbai, visite o Sardar.
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