Publicado em 22/02/23

Não será exagero pensar que já superamos o tempo das cruzadas? – Coluna Vida Simples

capa cruzadas

A Copa do Mundo de futebol da Fifa pode parecer, aos olhos de boa parte dos ocidentais, um evento “do mundo”, mas o fato é que, se olharmos mais de perto, perceberemos que o evento faz parte de um centro europeu e que quanto mais se foge desse centro, mais esparsa fica sua representatividade

 

Não. O fato é que os velhos dilemas e temas do passado, em tempos de Copa do Qatar, parece que voltaram para nos assombrar. Há poucos dias, saiu uma matéria do Uol chamada “História de massacres e canibalismo leva Fifa a vetar “cruzados” no Qatar”, que destaca o posicionamento da entidade futebolística de proibir que torcedores nos estádios vistam roupas que recordem os antigos cavaleiros cruzados. Por trás da proibição, há uma coerência que alguns desavisados podem não compreender.

Cruzando com sabores

Por muitos anos, dediquei meus estudos ao período das Cruzadas, que retratei no meu livro Sabores & Destinos – uma viagem pela história das Especiarias, afinal, o fluxo resultante das Cruzadas entre Europa e Oriente Médio mudou de vez a maneira pelo qual os europeus passaram a enxergar a gastronomia e a cultura.

 

Foto de uma estátua na cor cinza em um ponto central de uma rua com uma fonte de água embaixo.

Fonte nas redondezas da Cathédrale Notre Dame de l’Assomption de Clermont-Ferrand, na França. Foto: Arquivo pessoal / André Mafra

 

Tive o prazer de viajar para as duas pontas do movimento das Cruzadas, em seu início e em seu fim. Fui para Clermont Ferrant, na França, onde o Papa Urbano II fez seu histórico discurso, no ano de 1096 d.C., resultando em uma migração de soldados (que, em nome da cristandade, portavam a cruz em suas roupas, do latim cruce signatu), até Jerusalém. Esse fluxo que se repetiu por muitas vezes.

A chamada Terra Santa também foi objeto de estudo, desde o local das antigas muralhas, por onde os soldados cruzados entraram na cidade velha de Jerusalém, até os Horns of Hattim, local onde Saladino desbaratou de vez os invasores cristãos da região.

 

Uma placa nas cores marrom e branco sinaliza uma diração nos idiomas inglês, hebraico e árabe.

Sinalização da região dos Horns of Hattin, Israel. Foto: Arquivo pessoal / André Mafra

 

Sem dúvida alguma, o destino Israel foi um dos mais impactantes para minha vida, uma jornada que me fez entender mais o sobre a complexidade das relações políticas e sociais no Oriente Médio e perceber que os conflitos de quase mil anos atrás ainda reverberam no mundo de hoje.

“No livro As Cruzadas Vistas Pelos Árabes, de 1983, o escritor libanês Amim Maalouf mostra como as populações árabes, ao longo dos anos, interpretaram os cavaleiros cristãos que marcharam sobre suas terras na Idade Média. Eles seriam homens violentos, selvagens e sem piedade. ‘As cruzadas são ainda hoje tidas como uma violação.’” Trecho de uma Matéria do Uol (sugiro a leitura do Amin Maaalouf).

 

imagem de um livro cujo título 'as cruzasas vistas pelos árabes" está escrita em marrom com uma capa roxa e um cavaleiro vestido com roupas tradicionais

Foto: Reprodução

 

Torço para que não se cruzem

Dizem que a inocência, se muito prolongada, se transforma em burrice, que por sua vez, se mantida, se transforma em má fé. Vestir a fantasia de um soldado cruzado em um país islâmico pode ser justificado pela ode à liberdade, mas o ato pode ser de extremo mau gosto e bastante ofensivo.

Se ofende o outro, que tal segurar a vontade de colocar uma fantasia de um soldado cristão e canalizar para algo mais saudável, como a vestimenta de um Sheik ou de um Sultão das arábias?

Não se diz que a liberdade de um acaba quando começa a do outro? Para uma comparação bem mais leve, mas não menos desafiadora: e se um torcedor fantasiado de jogador alemão invadir as arquibancadas de um jogo do Brasil, como ele seria tratado?

Que a falta de conhecimento e noções básicas de história não gere torcedores inocentes que insistem em suas posições, talvez por burrice ou mesmo falta de boa intenção.

 

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Novos paradigmas, novos problemas

A Copa do Mundo de futebol da Fifa pode parecer, aos olhos de boa parte dos ocidentais, um evento “do mundo”, mas o fato é que, se olharmos mais de perto, perceberemos que o evento faz parte de um centro europeu e que quanto mais se foge desse centro, mais esparsa fica sua representatividade.

Para se ter uma ideia, nas eliminatórias de 2022, foram disponibilizadas para as seleções europeias, um total de 13 vagas para participar do mundial. Já para toda a Ásia foram 4, (somente 4!) e o mesmo número para a América do Sul. O critério “fifadiano” leva em conta a força relativa dos times das confederações e outros parâmetros que só nos mostram que há muito a evoluir.

Esta copa de 2022 é a primeira a se realizar no Oriente Médio e com a novidade surgem outros desafios e problemas. A questão dos direitos das mulheres, da comunidade LGBTQIAP+, das péssimas condições de trabalho dos imigrantes no Qatar e outras, já saltaram aos olhos da comunidade internacional e não há dúvida de que há muito que o Qatar necessita fazer a respeito.

Mas cabe aqui uma importante ressalva, quando apontamos o dedo para o Médio Oriente: precisamos olhar para dentro de casa também, para que resulte em uma análise crítica acerca do nosso universo futebolístico nacional. Será que não estamos nos esquecendo do espetáculo de misoginia e  homofobia que graça o mundo do futebol? Quem já frequentou um estádio em dia de jogo sabe do que estou falando. Como são tratadas as mulheres, os árbitros ou árbitras, os bandeirinhas ou os jogadores de determinada orientação sexual?

Capa do filme reel bad arabs com rostos de pessoas em filmes de revelação. O titulo está escrito em branco e as outras cores são marrom.

Assista ao documentário Rell bad arabs, how hollywood vilifies a people, dirigido por Sut Jhally e produzido pela Media Education Foundation, em 2006. Este filme é uma extensão do livro de mesmo nom,e de Jack Shaheen, que também analisa como Hollywood corrompe ou manipula a imagem dos árabes. Foto: Reprodução

 

O álcool também é um tema: a copa foi organizada em um país islâmico e um dos principais patrocinadores foi uma empresa de cerveja. Roteiro prévio de erro feio, erro rude, não é mesmo? Resultado: o Qatar, poucos dias antes do evento, manteve a restrição da venda de bebidas alcoólicas no país e tivemos as lamentáveis manifestações dos torcedores, pois queriam beber o néctar sagrado do Deus Lúpulo e não podiam. Alguns justificaram que, sem cerveja, não pode haver copa! Nesta mesma linha de raciocínio, podemos levar o próximo evento para Blumenau, em outubro…

Uma gafe, uma sucessão de pataquadas. E vamos com a segunda ressalva, a venda de álcool aqui em nossos estádios tem trazidos bons resultados? Soma e cria uma atmosfera de entretenimento permeada por respeito e bom comportamento dos torcedores? Fica a questão, sobram os interesses.

É hora de escutar mais, olhar para o outro com o intuito de inspirar-se e não apenas de apontar o erro alheio. Sua cultura, seus hábitos não são os únicos e, em muitos aspectos, são inferiores aos do outro. Que este mundão seja local de compartilhar experiências, de trocas e de muito respeito às diferenças de povos e culturas. Desejo que o mundo troque mais entre si e que o diálogo, quando não for possível, seja substituído pela cordialidade distante, ao menos.

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Andre Mafra

  Estudioso da área de culinária desde 2010, dedica-se a pesquisar e estudar sobre alimentação e especiarias. Realizou viagens aos… Continue lendo.

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