Publicado em 22/04/22
22 abril: o Brasil na rota das especiarias – Coluna Vida Simples
A busca pelos sabores das especiarias no Oriente resultou na entrada do Brasil no mapa do mundo. André Mafra reflete sobre as consequências daquele 22 de abril que mudaria para sempre a história do nosso povo.
Não teria como deixar o mês de abril passar sem relacionar o tema principal das minhas colunas — as especiarias — com o que se chamou de “descobrimento do Brasil” — “achamento” para outros — afinal, este território já existia com suas belezas e seus povos originários.
Enfatizei, em meu último texto, que não era exagero dizer que a busca pelas especiarias do Oriente moldou o mundo que nós conhecemos, desde as roupas que vestimos, a religião, a língua, até o que colocamos no prato para comer. Nesta coluna, adiciono ainda que a busca pelos sabores do Oriente provocou a vinda de Cabral ao território que hoje se chama Brasil.
O Brasil na rota das especiarias
Inspirados pelas fantásticas histórias do veneziano Marco Polo, os europeus — notadamente os portugueses e espanhóis —, foram buscar o que eles fantasiavam sobre o paraíso na Terra, um Oriente mágico com suas rotas secretas, um “éden de pomares e jardins perfumados com maçãs, peras, damascos, pêssegos, uvas, rosas, ervas, campos de açafrão e de papoula, árvores de zimbro, fartura de pimentas, cominho e de outras especiarias, com enfatiza a estudiosa Rosa Nepomuceno, autora do livro O Brasil na rota das especiarias.
Foram muitos os grandes exploradores que deixaram seu nome na história, como Cristovão Colombo, Vasco da Gama, Cabral, Magalhães e outros. Suas jornadas foram épicas e seus resultados trouxeram glórias e riquezas a alguns, mas também dor, sofrimento e morte para muitos. Porém, o fato é que o mundo mudou desde aqueles tempos.
Aqui, não precisamos nos aprofundar nas nuances relatadas pelas crônicas das famosas expedições, mas não custa relembrar que em 9 de março de 1500, zarpava uma turba de pessoas que tinha como destino as terras das especiarias, e o resultado você já sabe: no meio do caminho, em 22 de abril daquele ano, o território brasileiro foi achado e seus habitantes foram chamados erroneamente de índios. Pedro Álvares Cabral, meses depois, voltaria da Índia, consolidando uma robusta rota comercial que transformaria o mundo para sempre.
O que pouca gente sabe é que a comitiva de Cabral era uma resposta ao desastre diplomático da viagem de Vasco da Gama que, anos antes, em 1498, havia chegado até a terra das especiarias em um feito extraordinário, quando olhamos pela lente das possibilidades náuticas da época. A comitiva de Gama tinha um número reduzido de profissionais e embarcações, os presentes ofertados ao Samorim de Calicute foram percebidos como um afronta, pela sua simplicidade, e fazia-se necessário uma nova expedição que mostrasse a verdadeira valia da coroa portuguesa.
Portanto, ao escolher Cabral como Capitão-mor da viagem, D. Manuel, o rei de Portugal, definiu que aquela seria uma jornada de cunho armamentista, fato que se reforçou com a posterior designação de Afonso de Albuquerque, um outro navegador com larga experiência militar, para muitas outras expedições às Índias. A viagem de Cabral, de fato, foi uma forma de criar um momento de afirmação político-militar portuguesa na Ásia.
Acharam o Brasil
A frota cabralina aproximou-se da costa brasileira em 22 de março de 1500 e Nicolau Coelho foi o escolhido para fazer os primeiros contatos com os nativos. Segundo o texto do portuense Pero Vaz de Caminha, os locais eram pacíficos e tranquilos.
“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto.” – Fragmento da missiva de Pero Vaz Caminha ao rei de Portugal
Era óbvio que os indígenas encontrados não se pareciam em nada com as descrições ou percepções que se tinham dos nativos do Oriente, portanto, a terra de Santa Cruz não devia ser a Índia. Também seus costumes não se assemelhavam aos dos africanos.
Eles não temperavam suas comidas, pelo menos não com as especiarias conhecidas na época (cravo, canela, cominho e outras). Utilizavam-se de diversas ervas e de frutinhas picantes, que havia em demasia pelas matas brasileiras. Eram as frutinhas de diferentes cores e tamanhos, na verdade, as pimentas (do gênero capsicum) nativas das Américas no típico formato de frutos que Colombo, anos antes, em 1492, havia descoberto e levado para a Europa pela primeira vez — antes disso, as pimentas em formato de fruto, como a dedo-de-moça, eram desconhecidas no restante do mundo.
Fogueira de pimentas
Uma utilização interessante desse vegetal pelos indígenas brasileiros, era a de montar uma fogueira e queimar muitos pés de pimenta com o vento a favor. Essa fumaça tóxica seria levada até o inimigo, para desalojá-lo de seu abrigo. Uma versão arcaica do spray de pimenta.
Os nativos não conheciam o açúcar, nem o vinho. Sua bebida fermentada era à base de mandioca e era chamada de cauim. De início, não aceitavam os mantimentos que os portugueses ofereciam-lhes. Vinho, pão, peixe cozido e até água, os índios levavam à boca e rejeitavam. Nada grave, quando sabemos das péssimas condições de higiene dos mantimentos que chegavam nas grandes navegações. Tenho certeza de que um europeu de hoje que provasse aquela água ou vinho, certamente teria a mesma reação.
Os indígenas usavam pouquíssimo sal em suas refeições e nada deste ingrediente para conservar os alimentos. O que faziam era cozinhar a carne levemente, sem tostá-la. O sal foi pouco a pouco sendo introduzido pelos europeus, através das trocas que sempre foram a maneira de se estabelecer um contato mais amigável entre eles e os locais.
De onde viemos e para onde vamos
Não seguirei aqui com todos os pormenores. O fato é que a viagem seguiu e o Brasil entrou para o mapa do mundo. Desde então, são mais de 500 anos de história, dos quais podem-se considerar os dois últimos 200 como os minimamente estruturados para a formação de nossa nação.
De alguma forma, somos o resultado de tudo de bom e ruim, mesclados em um amálgama que hoje forma o povo brasileiro, afinal, não à toa você está lendo este meu texto na língua de Camões. Na verdade, precisamos concordar que nossa língua brasileira já faz um tempo que se distanciou dos Lusíadas, como brilhantemente nos mostrou a escritora e advogada Ruth Manu, em seu excelente artigo: Eu digo “Brasiu”, ele diz “Purtugal”, para o jornal O Estado de São Paulo, no dia 22 de abril de 2018.
Se estamos citando datas, precisamos lembrar que nosso 22 de abril não está nos calendários — utilizando-se de uma lógica binária e polarizada típica das redes sociais —, para ser celebrado ou odiado apenas. Muitas vezes, eu me perguntei o porquê do descaso da data em nossa terra natal. Em países vizinhos integrantes das Américas, o dia 12 de outubro é marcado como feriado nacional, por ser o marco da chegada de Cristóvão Colombo ao “Novo Mundo”, em 1492.
A história das grandes navegações foi impulsionada pela busca das riquezas que havia no leste do mundo (partindo de um ponto de vista eurocêntrico, obviamente) e seus resultados para os povos originários, como todos sabem, foi catastrófico.
Gostemos ou não, a data faz parte da nossa história, da formação daquilo que veio a se chamar Brasil e seu povo. Por isso, deve ser estudada, relembrada e, claro, revisitada para que possamos gerar reflexões do que somos, como surgimos e como queremos estar no futuro.
ANDRÉ MAFRA (@prof_andremafra) é autor do livro “Sabores e Destinos: uma viagem pela história das especiarias”. Na obra, faz uma imersão no universo dos condimentos, ervas e temperos – e, por consequência, nos primórdios da cultura e das próprias relações humanas.